Inicio essas palavras, com versos de Drummond, escritos no imediato pós-guerra quando se reacendiam as esperanças humanas, ainda que assombradas pela hecatombe genocida de Hiroxima e Nagasaki:
Hamilton Pereira / Foto: Ronaldo Barroso |
“Nalgum lugar faz-se esse homem. Contra a vontade dos pais ele nasce. Contra a astúcia da medicina ele cresce. E ama. Contra a amargura da política. Não lhe convém o débil nome de filho, pois só a nós mesmos podemos gerar. E esse nega, sorrindo a escura fonte. Irmão lhe chamaria, mas irmão por que? Se a vida nova se nutre de outros sais que não sabemos? Ele é seu próprio irmão no dia vasto. Na vasta integração das formas puras. Sublime arrolamento de contrários, enlaçados por fim.”
O século inquieto. O Brasil do século XX buscou definir para si um novo perfil. Deixou para trás o imobilismo do império escravocrata que predominou no século XIX. Tornou-se uma sociedade dinâmica. Injusta, mas dinâmica. Buscou despedir-se da chaga da escravidão e das heranças rurais oligárquicas, mas não venceu o coronelismo; proclamou a República, mas não a realizou culturalmente; buscou tornar-se um país urbano industrial, mas não escapou ainda dos condicionamentos de uma economia agro-exportadora; buscou tornar-se contemporâneo do mundo, mas arrastou consigo os ossos de instituições e comportamentos herdados de séculos anteriores; sonhou com a democracia, mas cresceu sob ditaduras; sonhou com a igualdade, mas produziu uma fratura exposta entre os ricos e os pobres; hoje, adota o discurso da sustentabilidade sócio-ambiental, mais ainda cresce depredando os recursos naturais.
Em meados do século XX o Brasil construiu a Nova Capital como parte do processo de “marcha para o oeste”, da interiorização do desenvolvimento. Assombrou o mundo com a ousadia do plano urbanístico e arquitetônico, mas reproduziu com ela a condenação histórica da Casa-Grande e Senzala, que nos marca a alma desde a colônia cercando-a com o cinturão de barracos para onde regressa, ao fim da tarde, a multidão dos seus construtores.
Os Candangos. Eles vieram de todos os cantos do país. Na mala de papelão ou no saco de aniagem traziam o que era possível trazer. Duas mudas de roupa e uma bagagem de esperanças. E as mãos dispostas a dar forma aos sonhos mais desmesurados, mais impossíveis. Em cinco anos traçaram as linhas leves, modernas, do Plano Piloto, concebidas pela febre criadora de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer; calculadas pela mão invisível de Joaquim Cardozo; revestidas pelos azulejos celestes de Athos Bulcão; estendidas ao horizonte infinito dos cerrados pela inteligência delirante de Darcy Ribeiro; ouvindo as polifonias de Cláudio Santoro, misturadas ao som da sanfona, pandeiro e zabumba, nos forrós da Cidade Livre, sob o impulso de Sayão, a urgência e a ordem implacável de Israel Pinheiro. JK encarnou o país naquele momento. Foi o coração pulsante daquela aventura: nunca na História do Brasil, até então, a realidade perseguira tão de perto os frágeis contornos de uma utopia. Dito de outro modo: nunca, na nossa História a utopia converteu-se tão vertiginosamente em realidade quotidiana, para dissolver-se em seguida nas sombras da noite que se abateu sobre o país no 1º de abril de 1964. E durante duas décadas converteram em pesadelos os sonhos que a sociedade brasileira alimentara.
Brasília, aos quatro anos, foi colhida pela ruptura institucional produzida pelo golpe de estado de 1º de abril de 1964, que rompeu o Estado de Direito, derrubou o Presidente legitimamente eleito e se impôs pela força dos canhões.
Construída como “urbs”, Brasília veio a se consolidar como capital administrativa do país antes de se constituir como “polis”: espaço de afirmação de identidade cultural e exercício da cidadania. Consolidou-se precisamente durante os “anos de chumbo” – mais de duas décadas – enquanto durou a ditadura militar. Consolidou-se sob o reinado do terror. Do silêncio. Da delação. Das perseguições. Da intriga. Da ausência de participação dos cidadãos. Como se fosse um refúgio onde os ditadores se protegiam do clamor das mobilizações sociais. Converteu-se, para usar uma expressão da época, que se perpetuou numa “Ilha da Fantasia”, num escudo de proteção ao poder arbitrário dos generais. Num certo sentido, Brasília se consolidou como negação das concepções generosas que deram impulso à sua invenção e construção.
- Brasília foi humilhada pela desfaçatez, pelo espírito de pilhagem, pela subordinação dos direitos dos cidadãos aos interesses privados de empreiteiras, de fornecedores de equipamentos e serviços, durante os dois últimos governos.
- O processo eleitoral expressou o repúdio dos cidadãos e cidadãs do Distrito Federal ao colapso das instituições provocado pela corrupção generalizada e pela perspectiva privatizante das políticas de ambos os governos e elegeu com quase dois terços dos votos um “Novo Caminho”. Um conjunto de propostas que recupera as experiências de Governos Democráticos e Populares em diversas unidades da federação, inclusive a nossa própria experiência 1995/98, encarnado na liderança do companheiro Governador Agnelo Queiroz.
- A Cultura lida com símbolos. Trabalha permanentemente com memória e invenção. Memória para recolher a expressão da criatividade das gerações anteriores e cultivá-la. Invenção para criar a partir dela a expressão dos sonhos futuros. Cultivar identidades e diversidades que enriquecem o perfil cultural do nosso povo. É cedo para afirmarmos que Brasília é uma síntese do Brasil. Só os séculos produzem sínteses culturais. Brasília ainda é um espelho quebrado da cara do Brasil. Diversa, multicolorida, desigual, insubordinada, viva.
- Brasília abriga um dos mais importantes patrimônios edificados do mundo contemporâneo. Um patrimônio de que brasileiros em geral e os brasilienses em particular se orgulham. Um patrimônio simbólico que visita diariamente os lares e o imaginário dos brasileiros. Reconhecido pela UNESCO como patrimônio cultural da humanidade. Aos brasilienses – estado e sociedade – cabe a tarefa de cuidar dele para cultivar nossa identidade como Capital voltada para o futuro, com uma gestão que, ao mesmo tempo, resgate esses espaços culturais no Plano Piloto e nas demais cidades do DF do estado de abandono em que se encontram. Que produza o conjunto de políticas necessárias à sua ampla utilização pela cidadania. Que vire uma página em que o papel do Estado se reduziu a alugar esses espaços culturais para a iniciativa privada. Que vire uma página em que a Cultura foi amesquinhada e reduzida a uma única dimensão dela: o entretenimento. A legitimidade do voto oferecerá a âncora para sustentar o papel do Estado, democrático e laico como indutor dos processos de produção, difusão e democratização do acesso aos bens e serviços culturais.
- Brasília foi inventada pela imaginação da esquerda. E construída pelas mãos do nosso povo mais pobre: os candangos. As Políticas Públicas de Cultura que defendemos se assentam sobre duas vocações: o exercício da democracia (da participação popular) e o papel do Estado como “indutor dos processos culturais”, porque entendemos cultura como um direito elementar do cidadão, como educação, saúde e outros serviços.
- Diálogo democrático com os criadores e produtores de bens e serviços culturais, com a sociedade política (os partidos da base de apoio do governo), e, nos temas específicos do interesse da cultura com os representantes da oposição na Câmara Legislativa; com os movimentos sociais e culturais (sindicatos, associações cooperativas, grupos culturais, ONGs); com as universidades (públicas e privadas); com as representações estrangeiras presentes na Capital da República (Embaixadas, Organismos Multilaterais ligados à ONU) para conferir a estatura e a consistência adequada às Políticas Públicas de Cultura do GDF. À altura da sua condição de capital da república.
- O professor Anísio Teixeira sonhou com uma educação humanista para os brasileiros. Recusou-se a fazer da escola uma usina, cuja razão social é multiplicar a legião de homens e mulheres amputados de sua capacidade criadora para servir como peças funcionais, reduzi-los a fatores de produção, multidão de cordeiros resignados para alimentar a garganta insaciável do mercado.
- A educação é o braço organizado e organizador da cultura dos povos. Para produzir espírito crítico. Para produzir cidadãos dotados de direitos. Cidadãos e cidadãs que incorporam esses direitos à sua própria condição de seres humanos, no exercício quotidiano da vida. Uma construção que precede, portanto, o ato de materializar direitos em propriedades.
- A sociedade brasileira sob a liderança do Presidente Lula alcançou conquistas expressivas nos últimos anos. Incorporar 32 milhões de pessoas ao mercado de consumo no curto prazo de oito anos não é trivial, em particular num país onde a distância entre ricos e pobres é mediada por um abismo. Está posto diante de nós o desafio: como converter essa conquista de melhores condições de vida por vastos setores da sociedade em efetiva mudança cultural. Do ponto de vista de incorporar valores que se exprimam em comportamentos, em atitudes em defesa da vida, da liberdade, da justiça, do direito ao trabalho, à cultura, do cuidado com os mais vulneráveis, da solidariedade, da sustentabilidade ambiental, da soberania e da paz. A eleição da companheira Dilma Rousseff e a magnífica acolhida que o povo brasileiro ofereceu a ela na tarde de 1º de janeiro de 2011 expressam de forma cabal o desejo da sociedade de aprofundar o processo lançado por esse filho do Brasil: o operário, o estadista Luiz Inácio Lula da Silva.
- Quem vos dirige a palavra neste momento. Um militante. Faço parte de uma geração de brasileiros que foi precocemente lançada à vida pública, na segunda metade do século XX, quando anoitecera o Continente, antes que viesse a ser velado pela Operação Condor, em condições consideravelmente adversas e, por essa razão, a polícia se apresentou antes do vestibular...
- Resistência à Ditadura militar. Clandestinidade, prisão, tortura, testemunho de brutalidades indescritíveis. Nomes: Carlos Marighella, Aurora Maria do Nascimento, Luiz José da Cunha, o Crioulo, Gastone Beltrão, José Porfírio de Souza, Alexandre Vannucchi Leme, Josimo Tavares. Paixão pela palavra em poesia. Alguns livros escritos. Cassação dos Direitos Políticos. Participação na reconstrução dos movimentos sociais, particularmente no campo.
Construção do Partido dos Trabalhadores, da Central Única dos Trabalhadores, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. E da Fundação Perseu Abramo, que tive a honra de presidir. Já estive aqui antes. Como Secretário de Cultura, na última metade do governo do Prof. Cristovam Buarque. Hoje regresso para assumir compromissos construídos a muitas mãos e que serão cumpridos a muitas mãos.
Nossa Presidente Dilma mencionou belas passagens de Guimarães Rosa no seu discurso. Lembro aqui diante desses desafios a palavra de Riobaldo, no Grande Sertão: “O sol procura é a ponta dos aços!” Bem vindos à tempestade!
Secretário de Cultura
Hamilton Pereira
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